23.8.08

Salvar uma vida

Hoje salvei uma vida.
Hoje salvei uma mulher que não queria ser salva e os meus fantasmas conheceram os seus abutres.

Da mulher sabia pouco. Ainda sei pouco. Aprendi o seu nome e um punhado de razões que a levaram à decisão de abandonar o mundo.
Quando a encontrei, fechada dentro do seu carro, envolta em caixas de comprimidos vazias, vómitos e um cheiro nauseabundo, julguei-a morta.
Senti, não sei porquê, que a vida já a havia abandonado há muito.
O odor a morte que saía do interior do carro decalcava a sombra das árvores em redor.
Ali não existia cor.
Apressei-me a procurar-lhe vida nas veias. Toquei-lhe o corpo esgotado, inchado, frio.
Ainda estava viva por dentro.
De repente, sem fazer um único movimento, da sua boca começaram a nascer gemidos que, em eco, subiam pelos troncos das árvores, percorriam os ramos, preenchiam as folhas e depois se derramavam sobre a terra escura, ensopando, sôfregos, a montanha inteira.
Agarrei-lhe a mão cinzenta. Apertei com força. Lembro-me de ter pensado que se conseguisse provocar-lhe dor a traria de volta à lucidez e talvez então os seus gemidos se transformassem em palavras e fizessem o céu chorar.
Fiz o que aprendi a fazer nestas alturas. Nestas alturas.
Imperturbável como a alma de uma pedra, permaneceu naquela posição de desleixo e os seus gemidos sibilinos começaram a rasgar coisas cá por dentro.
Desculpe, mas tem que viver. Hoje ainda tem que viver mais um bocadinho. Desculpe.
Foram as únicas palavras que, envergonhado, lhe consegui pronunciar ao ouvido enquanto arredava o cabelo dos olhos semi-cerrados com restos de lágrimas.
A mulher foi levada para o hospital e eu fiquei para trás a juntar os cacos da sua história.
O carro dela, as árvores verdes, as caixas vazias, o silêncio, as palavras escritas de despedida, as fotografias felizes, os documentos da sua identidade, o cheiro a morte… e depois a chuva.

Os abutres seguiram-na.
E naquele lugar de fim-e-príncipio os meus fantasmas, agora sós e salvos, quedaram-se junto a mim. A lamber as feridas.






1 comentário:

AnAndrade disse...

Quando morremos por dentro, não há vidas que nos salvem. E os abutres seguem-nos (para) sempre.
Sempre tua.