Um certo moço apaixonou-se por uma moça, de cujo nome Ezequiela. O jovem
se designava de Jerónimo. Foi amor de anel e altar. Em prazo fulminante
ajuntaram destinos, ele e ela, os dois e ambos.
Até que certa manhã
Jerónimo acordou e deparou com outra mulher em seu leito. Era uma
branca, de longos cabelos loiros. Ele cismalhou: quem é esta? Onde está
minha mulher? E chamou:
- Ezequiela!
A moça branca despertou, assustada com o grito, e respondeu:
- Que foi, meu amor?
E ele: que meu amor, que meio amor. Afinal, quem era ela e como se explicava ali, em pleno leito de outrens?
- Mas eu sou Ezequiela. Sou a sua mulher, Jerónimo.
Ele riu-se, incapaz de tudo.
- Como, se você é branca retinta e minha mulher é negra? Como, se os cabelos...
- Se acalme, Jerónimo: eu lhe explico.
E explicou. Que ela era assim mesmo, mudava de corpo de cada vez em
quando. Ora de um tamanho, ora de uma cor. E ora bela, ora feia.
Actualmente, branca e posteriormente, negra. Que ela se convertia,
vice-versátil.
- Você me ama, assim como sou?
- Como você é, como?
O problema sendo mesmo esse, o da identidade exacta dela mesma, a autenticada Ezequiela. E ele, pesaroso, meneou a cabeça:
- Não posso. Você não é aquela que eu casei.
Ezequiela lhe propôs então que, simplesmente, eles se deixassem em vida
de casal, por baixo de um igual tecto. E que deixassem vir o porvir. E
assim foi. De modos que ocorreu que, uma noite, Jerónimo tricotou seus
dedos pela seda dos cabelos dela. E os dedos se deliberaram por mais
corpo dela, até se atreverem por áreas recatadas. E se amaram e, de
novo, recomeçaram o enlace.
Já se habituara ao desbotado dela, à
lisura de seus cabelos, quando uma noite Ezequiela acordou esquimó,
peles amareladas, olhos repuxados em ângulo e esquina. E, numa outra
vez, ela se indianizou, pele aperdizada, cabelos azevichados.
Mas,
estranhamente: ela sempre ela, sempre Ezequiela. E Jerónimo a foi
aceitando, transitável mas intransmissível. No início, lhe custava esse
acerto e reacerto. Mas depois até encontrou gosto nesse jogo de
reencorpagem. E amava todas as formas, volumosas, translíneas,
tamanhosas ou reduzidas. Até dava jeito: ele era o polígamo mais
monógamo do universo.
Até que certa vez despertou a seu lado um
homem, barbalhudo e provido de músculo. Jerónimo sacudiu-se todo, como
se se limpasse de contaminação: dormira com tal homem? Que mais
partilhara com o intruso?
- Não se atrapalhe, querido. Sou eu, Ezequiela. Sempre sou eu.
Mas o facto é que Jerónimo se desengendrou. A sua mulher: um homem? Já
se vertera em branca e em preta, baixa em alta, tudo isso, sim. Mas
sempre mulher. Ezequiela o tentava sossegar mas ele, de perna atrás. Até
que espreitou a esposa na casa de banho. Seria ela, integralmente, um
ele? E, estremecimento geral: era mesmo. Após uma tarde em silêncio,
Jerónimo veio às falas:
- Desculpe, mas agira é de mais. Enquanto você for Ezequiel eu fico fora...
E saiu, sem armas nem bagagens. Dormiu sabe-se onde, comeu ao
deus-dará. Uma noite, porém, ele se sentiu doente, mais quente que fogo.
Em delírio se achegou a casa e deparou ainda com a esposa em fase de
macho. Ela o amparou em seus braços fortes e o trouxe para dentro. Ele
resistiu, tenso e afastado tanto quanto a conveniência. Ela o depositou
no leito e lhe trouxe toalha fresca e uma aguinha benigna. Aos poucos, o
marido amoleceu. E quando sentiu os lábios de Ezequiela lhe beijando a
testa até lhe veio um gosto de adormecimento. E se abandonou mesmo
estranhando um raspar de barba em seu pescoço.
No dia seguinte,
Jerónimo despertou reanimado e se olhou no espelho. Estranhou a
assimetria entre gesto e reflexo. Não era espelho afinal: do outro lado
da moldura era um outro trajando seu próprio corpo. Quem estava ali, nu,
diante de si, era ele mesmo. Trémulo, Jerónimo avançou a pergunta:
- Ezequiela?
E a voz, proveniente do outro, se espantou, devolvendo outra inquirição:
- Como Ezequiela? Você, Ezequiela, não reconhece o seu marido?'
Mia Couto, em 'Na berma de nenhuma estrada'