5.8.07

cinzas.



São horas. Fechas a porta. Deixas atrás o teu coração cheio e o nosso quarto vazio. Antes de abrires a porta do carro, levas o rosto ao espelho retrovisor, na esperança que ao menos ele te lembre que ainda existes.

Tens os olhos rasos de vida, minha pequenina.

Sentaste no banco do carro que sempre e tanto quisemos comprar.

Levas a chave á ignição e reparas na carica de cerveja que me levou a conhecer-te e depois a amar-te e depois a amar-me por te conhecer e amar.

Choras.

Apertas a carica até ela te magoar, mas não magoa, consegues apenas sangrar-te um pouco.

Pões o carro a trabalhar. Olhas, pela ultima vez queres pensar tu, para o apartamento que foi também nosso jardim, nossa quinta, nossa concha, nosso hotel, nosso universo. Dizes-lhe adeus. Soletras a palavra como se fosse a primeira vez que dizes adeus a alguma coisa. Choras mais um bocadinho. Aproveitas as lágrimas que te restam.

Olhas para o espelho e vês-te horrível, borratada, descabelada e gorda. Escutas-me a voz e nela o que te dizia quando te apanhava a chorar em frente ao espelho.

(Só a minha imagem me conforta. Sempre gostaste de ver tudo de ti. De ver-te nas coisas, nas emoções, nas relações. Quando não tinhas um espelho por perto, saías de ti e entravas na primeira coisa que se ligasse a ti. Este exercício, a que chamavas de auto-empatia, deixava-te de rastos. Sugava-te, porque de cada vez que te viravas para ti mesma tudo o resto ganhava mais distância. E ainda hoje sabes pouco do que és quando olhas o mar, ou quando tropeças no passeio, ou sentes aquele cheirinho a pão, ou quando fazes amor.)

Com o carro a trabalhar, tentas fazer o teu exercício mas agora em nada te consegues entranhar para te poderes ver. Nada te reflecte. Em nada te podes ver vista.

Já não choras. Tens os olhos vermelhos de parir tantas lágrimas.

De mãos no volante, olhas para nada. De tão pesada que tens a alma, os teus sentidos afogaram-se.

Ligas o rádio e, porque não queres tropeçar sobre nenhuma música que eu e tu já escutámos, escolhes as notícias. Mas as notícias do mundo não te afastam um milímetro de mim e de ti.

Enfureceste por já não teres lágrimas e depois por já não me teres a mim. Irritaste porque a culpa é minha de tudo. É.

Arrancas com o carro, furiosa. Voas. Decides finalmente levar-me para longe de tudo e, sobre-tudo, de ti.

Casas. Arvores. Lixo. Casas. Terra. Carros. Pessoas. Bichos. Casas. Arvores. Mas de nada disso te dás conta agora, porque pensas em mim e decides libertar-te de mim. Finalmente.

E lá vais tu olhando para os espelhos do carro, das montras, dos cruzamentos. (Sim, existes.)

Depois, como te pedi, retiras a capota do nosso lindo carro (tens tanta sorte em estarmos em Junho) soltas o teu cabelo cor de avelã que ainda tem restos dos meus beijos e colocas aquela minha música. «...let the show begin...» Alto. Mais alto. Muito alto. Vais passar por maluquinha, miúda.

Repeat. Repeat.

Chegas ao mar. O mar…

Entras no caminho de terra vermelha e segues até ao lugar que foi nosso ninho tantas vezes. Do coração chega-te a memória da noite em que amolgámos o capon do carro do meu pai enquanto estávamos na marmelada. Sorris e sacas mais um par de lágrimas aos teus olhos esgotados.

Repeat. «...But it's all just a show A time for us and the words we'll never know And daylight comes and fades with the tide...» Repeat.

Páras o carro. Lá ao fundo o sol acasala com o mar e inspiras bem fundo o cheiro de todo aquele cio de luz e água.

Exausta, consegues abrir as asas e partir em direcção àquele acasalamento divino. Reparas que saíste de ti. Finalmente. Vês-te á beira daquele precipício. Vês-te feia, desesperada, ao lado de um carro. Sorris outra vez e chamas-te estúpida e outros nomes. Ris-te enquanto á tua frente flutuam imagens em cores vivas que evocam instantes e do que foste, neles, aprendendo de ti.

Depois lembras-te de mim e regressas, apressada, ao meu encontro.

«...And daylight comes and fades with the tide _I'm here to stay.»

São horas.

Abres a porta do teu carro.

Estendes a tua mão quente e confias, de olhos fechados de nós, as minhas cinzas ao horizonte.




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