18.8.07

Elogio da Loucura



Digam de mim o que quiserem (pois não ignoro como a Loucura é difamada todos os dias, mesmo pelos que são os mais loucos), sou eu, no entanto, somente eu, por minhas influências divinas, que espalho a alegria sobre os deuses e sobre os homens.

Não nasci nem do Caos, nem dos Infernos; não devo a luz nem a Saturno, nem a Jápeto ou a alguma outra dessas velhas divindades sem valor. Pluto foi meu pai, esse Pluto que, não obstante Homero, Hesíodo e mesmo o grande Júpiter, é o pai dos deuses e dos homens; esse Pluto que, hoje como outrora, desarruma à vontade e põe de pernas para o ar as coisas profanas e sagradas: esse Pluto que conduz a seu capricho a guerra, a paz, os impérios, os conselhos, os tratados, as alianças, as leis, as artes, o que é sério, o que é divertido, (…).

Meu pai não me concebeu em seu cérebro, como Júpiter concebeu outrora a grosseira e mal-humorada Minerva; mas deu-me por mãe Neotetes, a Juventude, a mais bonita, a mais alegre, a mais folgazã de todas as ninfas. (…); nasci, como diz o bom Homero, em meio aos transportes deliciosos do amor.

(…); nasci nas ilhas Afortunadas, lugar encantador onde a terra, sem ser cultivada, produz sozinha os mais ricos presentes. (…)

Nascida nessa terra de encantos, meu nascimento não foi anunciado por meu choro; assim que vim ao mundo, viram-me sorrir graciosamente para minha mãe. Seria um grande erro eu invejar a Júpiter a felicidade de ter sido aleitado por uma cabra, pois as duas ninfas mais graciosas do mundo, Mete, a Embriaguez, filha de Baco, e Apédia, a Ignorância, filha de Pã, foram minhas amas-de-leite.

(…)

Ó céus! Acaso há homens mais felizes na terra que os comummente chamados de loucos, insensatos, bobos e imbecis? (…) Em primeiro lugar eles não temem de modo nenhum a morte, o que, certamente, não é uma pequena vantagem. Não conhecem nem os remorsos que as histórias dos infernos inspiram aos outros homens, nem os pavores que os espectros e almas do outro mundo lhes causam. (…) Não conhecem vergonha, nem temor, nem ambição, nem ciúme, nem ternura.

(…)

Entre os louvores feitos a Baco, o mais glorioso, certamente, é que ele dissipa as preocupações, as inquietações e os sofrimentos. Mas não por muito tempo: passada a bebedeira, o bêbado retorna aos desgostos de sempre. Não é a felicidade que proporciono aos homens bem mais completa e mais doce? Mergulho-os numa embriaguez contínua, a alma deles nada incessantemente num mar de prazeres e de delícias, e tudo sem lhes custar nada.

Mais generosa que outros deuses, que espalham seus dons apenas sobre alguns mortais, não aceito que um único homem seja privado de meus benefícios. Não é em toda a parte que Baco faz produzir essa bebida agradável que inspira a coragem, dissipa os desgostos e enche os corações de esperança e de alegria; Vénus raramente concede o dom da beleza; Mercúrio, mais raramente ainda, o da eloquência; as riquezas caem apenas sobre alguns amigos de Hércules; as coroas, sobre alguns favoritos de Júpiter; Marte ouve, às vezes, as súplicas dos dois exércitos inimigos, sem atender nem uns nem outros; Apolo consterna com frequência, por suas respostas, os que vêm consultar seus oráculos; (…)

Somente eu, essa Loucura que estais vendo, é que dou a todos os homens os bens que os deuses só distribuem a alguns de seus favoritos. E para isso não exijo nem preces nem oferendas; (…)

Os poetas não me devem tanta obrigação: sua condição mesma lhes dá um direito natural a meus dons. Eles constituem, como sabeis, uma nação livre, ocupada a todo o instante em adular os ouvidos dos loucos com frivolidades e histórias ridículas. E não precisam mais do que isso para se julgarem no direito de aspirar à imortalidade e mesmo de prometê-la aos outros. O amor-próprio e a adulação têm por eles uma amizade muito especial, e ninguém na terra me presta um culto mais puro e mais constante.

(…)

Todos esses pretensos sábios, que vejo rir com tanto gosto de todas essas coisas e que se comprazem tanto em zombar da loucura dos outros, acaso acreditam não me deverem nenhuma obrigação? Eles me devem muitas e grandes, asseguro-vos, e, se ousassem negá-lo, seriam os mais ingratos de todos os homens.

(…)

Mas, a propósito, esqueço que vos prometi terminar. De resto, se achais que tagarelei demais, ou se deixei escapar alguma extravagância um pouco forte, lembrai-vos, peço-vos, que é a Loucura, que é uma mulher que acaba de vos falar. Mas lembrai-vos também deste provérbio grego: um louco diz às vezes coisas boas – a menos que penseis que as mulheres sejam uma excepção a essa regra geral.

Os gregos diziam outrora: Odeio um conviva que tenha memória boa demais; eu vos digo agora: Odeio um ouvinte que se lembre de tudo. Adeus, pois, ilustres e caros amigos da Loucura, aplaudi-me, passai bem e diverti-vos.

Erasmo Desidério, Elogio da Loucura




_ «‘É uma infelicidade ser louco, viver no erro e na ignorância’. - Mas isso é ser homem, meus amigos!»

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