3.7.07

Dona Cecília.


Dona Cecília vive a três palmos de calçada do mundo. Numa casinha branca que só poderia ser branca, cheia de naprons que fez das horas, santinhos que vieram de Fátima e caixas de remédios para regrar o corpo.

Dona Cecília tem 70, 90, 150 anos de uma vida que lhe curvou as costas e agora a obriga a olhar para tudo o que pisa.

Dona Cecília tem um gato cinzento que não gosta de ter mas que adoptou para provar aos filhos que ainda sabe cuidar de si, de alguém, de coisas e gatos. Acabou por se afeiçoar ao bicho e até dar-lhe atum e salsichas de vez em quando.

Dona Cecília não tem um futuro a perder de vista, mas tem um passado arquivado nas rugas e uma cruz do Senhor sobre a cabeceira da cama para que nunca se esqueça de dar graças por tudo, apesar de tudo.

Dona Cecília é uma senhora. Foi menina durante pouco tempo.

O pai emigrado na França e a mãe com quatro filhos mais novos para criar, tiraram Menina Cecília da escola e puseram-na a servir famílias abastadas lá da terra. «Desde os doze anos!», anuncia Dona Cecília, quando a descompõem os horários e hábitos mimados dos seus queridos netos.

Dona Cecília foi boa menina Cecília. Arranjou tempo para o ser, entre as tarefas da casa e do campo, os irmãos, as refeições de pão com azeite, as cozinhas e as casas-de-banho das boas famílias e a catequese.

Dona Cecília, que com urgência, muito evoca a menina, não diz palavrões nem mal dos outros, não perde uma missa e só não separa o lixo porque já vê mal as cores.

Dona Cecília sente-se sábia e emancipada após 67, 93 ou 132 anos de vida. Já aceita o homem na lua, as ordinarices das novelas, as vídeo chamadas, os iogurtes líquidos e até a falta de fé dos seus netos no seu Senhor.

Dona Cecília aprendeu o que é o tempo e o que o tempo faz apesar de ninguém querer saber o que os seus olhos vêm para lá das cataratas.

Dona Cecília sabe que agora já só desce degraus e os sermões do padre nunca a atemorizam porque se deita sempre com um sorriso a pender-lhe do rosto, depois de sacudir da sua colcha de cama os pêlos do raio do gato.

Dona Cecília colecciona fantasmas. Desde as suas avós, os seus pais, irmãos, tios, primos, compadres até ao seu marido.

Dona Cecília lembra-se muitas vezes do seu falecido companheiro de 48, 56 ou 1000 anos de vida. Sente-lhe a falta à lareira, à mesa, antes de trancar a porta de casa. Sente-lhe o cheiro no lado da cama onde ele dormia. Sente-lhe a força e o desapego no filho mais velho que é viaja num camião pelo mundo, o coração boémio no do meio que está bem na vida porque a fez na Suíça e a beleza na sua mais nova que é professora.

Dona Cecília sempre foi boa esposa, desde o primeiro dia de um casamento arranjado. É que um dia, num baile da terra, a Menina Cecília de 13, 14 ou 15 anos de vida, dançou com um menino com a mesma idade e a mãe da menina e do menino viram amor naquela dança. E conduziram-os ao altar, porque os pobres se casam com pobres quanto mais depressa melhor e o amor se faz com o tempo. A mais longa dança. Foi assim que a Menina Cecília se tornou Dona.

Dona Cecília nunca narrou o seu começo como Dona. Inventa parábolas para adocicar a verdade sempre que as suas casadoiras netas a questionam sobre a sua “primeira vez”. Dona Cecília foi feliz com seu marido, com os filhos e a com a casa que ele lhe arranjou e isso é que importa.

Dona Cecília, hoje, só maldiz o vinho que avaria as pessoas e os laços das pessoas, e depois lhes tira a vida a começar pelo fígado. Assim enviuvou.

Dona Cecília é uma mulher robusta. Os anos agravaram-lhe as ancas, as pregas do corpo e do coração. E ela diz que assim se envelhece.

Dona Cecília esforça-se por permanecer nos hábitos da família porque ainda quer. Sabe que é sozinha apenas com a sua história, os seus fantasmas e o seu gato, que está a mudar de pelo outra vez.

Dona Cecília tem 178, 634 ou 10 mil anos de vida. Vai contando aos dias que lhe caiam o cabelo a sua história – «coisas de velha», diz-se a si mesma.

As vezes apetece-lhe gostar da música que o neto ouve, em altos berros, no quarto, apetece-lhe admirar as ideias da filha universitária da vizinha, que se apelida de feminista e troça de todos os homens. Tem vontade, às vezes, de falhar uma missa só para ficar na sua cama quente a olhar para o tecto branco. Tem vontade de expulsar o gato peludo da sua casa. Apetece-lhe insultar os Jeovás que lhe batem à porta – dos quais foge e esconde, como o diabo da cruz. Apetece-lhe fazer coisas que lhe devolvam o sangue às veias e a juventude à alma. Ás vezes. Só às vezes.

Dona Cecília sabe coisas que mais ninguém sabe. Sabe o que é ter fome, frio e desespero. Sabe o que é inveja, solidão e vergonha. Viu coisas que mais ninguém viu. Conhece a falta, o eco e o vagar. Aprendeu o amor, a dependência e o sacrifício.

Dona Cecília conhece o seu futuro e aguarda-o, mais paciente que nunca.

Dona Cecília foi uma muralha, depois uma ilha, e agora é uma folha apaixonada pelo Outono.



José Laura Saavedra

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