4.7.07

flores.


Enchi-me de coragem e entrei.

Era a primeira vez que entrava numa florista. (As coisas que agora eu faço por ti.)

Sempre te colhi tantas flores… e agora, uma mancha negra instalada no teu cérebro obriga-me ao abandono dos costumes. Obriga-me a procurar a novidade e a raridade. Força-me ao sufoco e urgência da surpresa e brilhantismo – ingredientes necessários a qualquer redenção. É o início do derradeiro sprint. Da tua viagem sem regresso. E cá vou eu, em busca de todas as coisas que, supostamente, tornarão mais bela a tua partida (supostamente).

A loja era pequenina. Tinha flores nas paredes, nos cantos, a nascer do tecto. Sobre um pequeno balcão de madeira enegrecida ou pela força da estética ou do tempo, crescia uma caixa registradora com pequenos vasos de plantas anãs, verdes e castanhas. Um Éden privado, com cheiro a baunilha – e não sei porquê baunilha. Não havia mais ninguém.

Comecei, como um profissional, a examinar aquele jardim, apesar do meu quase incontrolável impulso de me roçar, cheirar e libertar do cativeiro todas aquelas cores. Mas não me atrevi a aproximar demais. A senhora ao balcão, enquanto mexia na caixa registradora com vasinhos, olhou para mim e sorriu, condescendente. Com aquele sorriso de quem se acostumou a ser para os homens que vão a floristas uma espécie de fada-madrinha, deixou-me à espera das suas palavras.

«Precisa de uma ajudinha? Olhe que as felizardas, hoje em dia, estão cada vez mais exigentes!»

Eu sorri-lhe de volta, com embaraço nos gestos e a tua imagem de moribundo no coração. Sempre foste um felizardo e um exigente. Apaixonei-me por ti exactamente por isso, por seres capaz de ser feliz e exigente ao mesmo tempo, eu, que nunca pensei que tal fosse possível, mesmo agora, que esse maldito vulcão se agita dentro da tua cabeça e me faz t(r)emer que, sem dar conta, expludas.

«Se é para um amor, já sabe: rosas vermelhas!» E terminou a revelação citando a tal Isabel que foi santa por ter queda para milagres e jeito para pobres.

Quantas flores te ofereci? De todas as cores e formas e cheiros. Uma vez até tive coragem de te colher uma orquídea – a minha flor perfeita – que sacrifiquei para que tu perdoasses a minha cobardia, o meu modo de te abraçar e beijar e olhar como quem atravessa uma estrada _olhando sempre, e primeiro, para os lados.

«Se for só para uma amiga, temos…» e vi-me outra vez contigo, naquela tenda de campismo, em Mil Fontes. «Não penses que me vou contentar com isso. Eu quero ser feliz.» Foi assim que te comecei a amar, envergonhado, arrebatado pelas tuas mãos que, não satisfeitas com as minhas, me tomaram o corpo inteiro e a alma toda, deixando-me sem pé, sem abrigo, do lado de fora de mim mesmo. Meu feliz e exigente amor!

Depois desse dia passámos, como contam as histórias dos livros, a ser só um. Arranjei desculpas para que me deixasses entrar, com a tua licença, na tua vida, na tua cama, na tua cabeça – como eu percebo essa maldita mancha. Também eu me apaixonei por esse lugar de onde nasciam as palavras que me incendiavam. Também eu desejei invadir-te, desconstruir essa rede de neurónios onde se prendiam, como moscas numa teia, todos os mistérios do universo e a toda a lógica necessária para o decifrar. Mas sem te magoar. Sem te sugar a vida, é claro.

«… E então? Já se decidiu?». Agradeci à fada-madrinha das flores e saí com um par de lágrimas a rebentarem-me nos olhos.

Estas à minha espera. As tuas únicas visitas sou eu e a minha devoção. Perdeste tudo o resto quando me ganhaste e fizeste questão em me mostrar, orgulhoso, a toda a gente. Preteriste o teu pai e a sociedade lucrativa na sua empresa. Abandonaste o futuro feliz que a tua mãe bordou nas toalhas para o teu enxoval. Bateste nos teus amigos quando soubeste que me tinham batido por causa do que eu fiz ao teu sossego, à tua carreira, à reputação da tua família, à tua herança, ao teu futuro perfeito.

Conduzo sôfrego, como se tivesse que atravessar o mundo todo para chegar a ti. Acelero porque a qualquer momento aquele quarto de hospital pode desabar sobre o teu peito e tirar-me o direito de me aninhar sobre ele uma última vez. Vou sem flores e sem esperança. Vou sem querer regressar e deixar-te para trás.

Já só olhas para mim porque te esforças. Olhas-me sem instinto. Quem me olha agora é essa invasora que tomou, traiçoeiramente, o epicentro do teu corpo e anexou todos os outros lugares da tua pele. Mas eu sei que ainda és tu, meu amor, nessa sombra. Alguma parte de ti escapou a essa negra ditadora que te condena à morte.

Dou-te uma orquídea. Mil. Biliões, para te pedir, mais uma vez, perdão. Para te implorar que não sucumbas ou que, pelo menos, me leves contigo. Porque agora sou só. Desesperado. Triste. Como era antes da tua aparição. Nenhuma flor tem o teu cheiro.

«Precisa de uma ajudinha? Olhe que as felizardas, hoje em dia, estão cada vez mais exigentes!»

Conto-te o meu episódio na florista. Falo-te da fada-madrinha e da sua caixa de dinheiro e vasos, e da sua infinita e floral sabedoria. Conto-te como se te descrevesse um qualquer pequeno acidente doméstico mas tu, que sempre me leste em todas as entrelinhas, sorris e olhas-me com pena.

Pego na Bic e no bloco de folhas que te deixei na mesa-de-cabeceira, para o caso de decidires deixar-me, escritas, as tuas ultimas palavras, e em silêncio, com a minha mão a segurar a tua, começamos, a desenhar uma flor, daquelas que qualquer criança é capaz.

Acabo. E tu, sozinho, colocas primeiro dois pontinhos e depois uma linha curva no centro redondo da nossa flor e dizes: «Tem que estar feliz!». E enquanto eu choro, o que resta de ti toma as rédeas da tua mão e vai aperfeiçoando a nossa obra com sombras, padrões e realidade.

Assim ficas. Continuas a desenhar-me flores, mas agora sem pressa, apenas com vocação.

Enquanto aguardo o nosso reencontro, tenho, sobre a mesa-de-cabeceira, a mais feliz, perfeita e bela flor que alguma vez vi. A minha herança. O teu testemunho. A nossa metamorfose. A única coisa que hoje me fala de ti, do que sempre foste e do que fizeste da minha vida.


José Laura Saavedra



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